Continua a nossa reflexão com “a arte é longa” para nos reportar ao dado histório da nossa existência e o que fazemos com ela. Hipócrates continua a ser o mote: “a arte é longa”A vida tem sempre o passado, o presente e o futuro. No dizer de Santo Agostinho, ao passado se associam as nossas fixações, ao presente os nossos apegos e ao futuro as nossas projecções.
Toda a nossa reflexão estará agora à volta deste pensamento e como o devemos olhar na nossa realudade vital e humana.
A ALMA humana deve ter sempre na sua realidade vital três aspectos:
- Memória presente do passado
- Intuição presente do presente
- Expectativa presente do futuro.
Estes três aspectos exigem a cada pessoa uma fidelidade a si mesma e ao mesmo tempo uma consciência de se tornar naquilo que ainda se não é, ou seja, olhar o mundo e o futuro com uma permanente abertura ao novo da sua história humana. Podemos chamar a isto um processo de amadurecimento ou maturação humana.
Como todos os processos pelos quais passamos, este, traz consigo algumas rupturas que podem coarctar e romper com o equilíbrio da nossa maturação. Muitas vezes tornamos-nos vítimas de nós mesmos: vítimas das nossas fixações no passado, vítimas dos nossos apegos no presente e vítimas das nossas projecções futuras.
Vítimas das nossas fixações no passado quando as carregamos no nosso “eu” muitas memórias menos simpáticas como traumas, frustrações, medos, etc...
Neste âmbito quase sempre imputamos ao outro a culpabilidade pela nossa memória negativa do passado, nós dificilmente imputamos a nós mesmos a culpabilidade, ou parte dela, a estas fixações menos boas. À nossa volta encontramos frequentemente o “bode expiatório” ou alguém com “costas largas” sobre quem despejar a culpa de todos os nossos males passados e que permanecem na nossa existência. Desta forma jamais colocaremos a nós mesmos a questão sobre a nossa responsabilização já que foi outro, ou outrém, o causador de tudo. Facilmente referimos que não fomos nós que escolhemos nascer, não fomos nós que escolhemos isto ou aquilo, foram os outros que...
Neste sentido urge integrar a nossa história e a nossa memória dentro do nosso correcto processo de maturação, mesmo que quisessemos apagar de vez, coisas passadas, da nossa memória tal seria impossível porque não somos máquinas ou seres sem sentimentos. Então, o importante não é deixar-nos vitimizar por estas fixações passadas mas integrá-las de forma a que possam desvanecer-se no que de bom tem o presente.
Mas face a este presente corre-se muitas vezes um outro processo de vitimização: a dos apegos do tempo presente.
Esta vitimização dos apegos não é mais do que uma alienação face à história e indiferença face ao futuro: “quero lá saber”, “corra o mar para onde correr”, “Deus dirá o amanhã”...
Esta é a atitude de quem está totalmente apegado ao aqui e agora, apenas ao viver hoje, como forma de garantir quer se esgota tudo o que é possível no momento presente. É o querer viver o que tenho agora como certeza e assegurar o presente esquecendo o passado e não olhar para o futuro. É como que jogar com a vida, curtir simplesmente o momento e nada mais. Se estivermos atentos às nossas crianças e adolescentes, é isto mesmo que começam a viver já que toda a cultura com que se deparam no seu ambiente leva a esta mentalidade, curtir e gastar o momento presente porque amanhã logo se vê.
Aqui podemos por em paralelo a nossa atitude interior face a muitas coisas, ou seja, é bem diferente dizer que já só falta uma semana para começar a trabalhar de ainda tenho uma semana para descansar e recuperar força e vigor físico.
Fugir a este tipo de vitimização implica olhar o futuro com positivismo vivendo o presente com esperança. Ora esta é então uma atitude de confiança à acção do Espírito Santo em nós.
Não nos abrirmos a esta confiança na acção de Deus em nós leva então a uma terceira vitimização: a das projecções futuras.
Aqui perdemos completamente de vista o tempo presente para olhar apenas para o futuro. Esta projecção condiciona o momento presente e toda a nossa história. Perdemos assim o desafio do hoje, do agora face à criação de espectativas que podem sair frustradas e que terão como consequência o desânimo, a tristeza, o cruzar os braços, o não vale a pena lutar por...
Nunca nos sentimos, assim, bem onde estamos, só queremos estar onde não estamos.
No nosso presente, e para fugir a uma tal vitimização, é preciso investir face ao futuro, criara bases sólidas para o desafio que se nos apresentará no amanhã. Colocar o nosso futuro, e por conseguinte a nossa vida, na esperança em Deus é colocarmos o que somos e temos num caminho constante que nos leva a um dia melhor.
Para tal urge uma vigilância crítica do presente que leva à lucidez de integrar o passado e projectar o futuro com a novidade que a liberdade dos filhos de Deus permite. Neste sentido jamais podemos domesticar a nossa história ou corremos o risco de ser vítimas permanentes da mesma.
Voltamos a recordar os trâs aspectos de St. Agostinho acerca da realidade da alma:
- Memória presente do passado
- Intuição presente do presente
- Expectativa presente do futuro.
A unidade entre estes três aspectos impede-me de me entregar somente ao passado e ao mesmo tempo ao futuro sem mais, indefezo. Esta unidade leva a uma maior maturidade de vida e de fé que implica uma identidade da alma espiritual que se abre despojadamente ao projecto de Deus, identidade essa que não é estática mas dinâmica.
Neste sentido eu não sou um mero espectador, receptor passivo de acontecimentos históricos. Sou responsável por dar uma resposta fiel a mim mesmo e por mim mesmo e não pelo que os outros dizem acerca de mim. Como exemplo disso temos a resposta dada pelos Samaritanos à mulher que falara com Jesus: «Já não é pelas tuas palavras que acreditamos; nós próprios ouvimos e sabemos que Ele (Jesus) é verdadeiramente o Salvador do mundo.» (Jo 4, 42)
Temos em nós e na nossa razão crítica uma capacidade criadora, selectiva de valores, projectos e caminhos que levam à liberdade interior, não pelo que os outros dizem de nós mas pelo que nós temos consciência que somos e fazemos.
Este caminho não pode ser estático, pois não seria caminho, é dinâmico na medida em que temos sempre presente esta acção de Deus em nós e por nós. Como dizia Cervantes, “não existe caminho, este faz-se ao caminhar...”.
A nossa vocação não é um segundo elemento da nossa existência, é substancial a ela e acolhemo-la incondicionalmente tal como fizemos com a vida. Não escolhemos nascer, não nos vocacionamos a nós próprios. Nesta perspectiva, a nossa vocação humana, é algo inerente à nossa vida. Criados que fomos, fomos também chamados a um agradecimento incondicional ao Pai, numa perspectiva do passado, e um desafio de fidelidade ao futuro pedido por Deus. É por isso que podemos afimar com Hipócrates que “a arte é longa”.
Prometer fidelidade à proposta de Deus (fazer um voto) não é garantia dessa mesma fidelidade já que esta só se poderá afirmar após a nossa morte e olhando o nosso passado. O que fica garantido é a promessa de tudo fazer para ser fiel, mas esta é uma realidade permanente e ainda não consumada.
No Matrimónio, como na Vida Religiosa, dá-se o mesmo processo desta realidade. Não basta dizer “eis-me aqui, faça-se”, nas medida em que isto pode parecer uma mera obediência por medo e não uma manisfestação de maturidade humana e de liberdade interior.
Dizer “eis-me” implica sentir a alegria de dar uma resposta concreta à expressão igualmente concreta do que somos enquanto homens e mulheres livres e conscientes da resposta a dar: a minha resposta livre ao Deus que me chama à liberdade. Diz e muito bem o povo que “ um santo triste é um triste santo”. Deus quer-nos livres e felizes para responder com amor e alegria criando assim na nossa vida a arte que perdura quando se sente o gozo e a alegria de viver e construir com Deus o caminho.



2 comentários:
Amigo, quando cheguei ao final da leitura desta reflexão, senti-me como uma criança na sala de aula, levantando a mão e dizendo:
Pode repetir sr. Professor?
E porque assim o permitem as novas tecnologias, cliquei e voltei a ler...seleccionei várias frases, deixando-me encantar com esta sua reflexão tão profunda.
Sou muitas vezes “acusada” de ser uma optimista nata, quando afirmo que costumo olhar para a noite, entre dois dias...ou quando tenho sêde e fico contente se encontro um copo meio de água, em vez de ficar triste porque está meio vazio...
Senti-me identificada com afirmações como estas:“Fugir a este tipo de vitimização implica olhar o futuro com positivismo vivendo o presente com esperança. Ora esta é então uma atitude de confiança à acção do Espírito Santo em nós.”
“Deus quer-nos livres e felizes para responder com amor e alegria criando assim na nossa vida a arte que perdura quando se sente o gozo e a alegria de viver e construir com Deus o caminho.”
Continue Amigo; bom retiro, estamos consigo porque "caminho se faz caminhando..."
Amigo! Mas quem sou eu para comentar reflexão tão profunda… pequena e miserável criatura de Deus? Apesar da minha pequenez acho que devo dizer algo…
Nota-se que estás a fazer “caminho” caminhando, através das reflexões/partilhas no “Blog”. Fico feliz por isso. A sua partilha ajuda também o meu caminhar…Na verdade, o mais importante, é fazer tudo para ser fiel…e no nosso caminho encontramos luzes e sombras… sombras - oportunidades para caminharmos e crescer, vencendo os perigos de perder-nos no caminho. Devemos ter uma direcção, um alimento que nos ajude a caminhar… Cristo Palavra e Pão, alimento e força.
Com este alimento e esta força sentimo-nos livres e felizes, respondendo cada dia com Amor e Alegria, e, assim vamos fazendo o nosso caminho com ELE…
Continua assim amigo, porque São Francisco deve estar muito feliz por ti… estou contigo, fazendo caminho…
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